Havia no ar uma promessa de calor tropical; e outra, de tempestade iminente.
Um semblante sombrio descia a rua íngreme do Coliseu,
certeiro e eriçado, num transe só seu. Ao fundo os prédios maciços da Avenida
acompanhavam o seu humor nervoso, e a ânsia feroz de quem, impaciente, sustém a
respiração até ao desenlace. O rapaz profetizava solenemente, a cada três
passos, a perdição: o mundo acabaria nos
próximos dois minutos e toda a cidade o esquecera. Egoisticamente (sabia-se
sozinho), o fardo causador de toda a agitação caminhava a seu lado, quatro palmos
mais à frente, seguro do seu papel de titã. Ele por sua vez, Zeus salvador, era
totalmente impotente – e assim nada faria, por nada poder. Aquele colosso ditaria o final.
A sua deixa na encenação seria a profecia do dilúvio (uma réstia fraquíssima de
esperança assegurava-lhe que «não; da abundância!»... logo o saberia). No céu
as trevas tomavam rapidamente o lugar ao dia. Num instante a guerra estava
ganha, com os últimos focos de claridade a serem engolidos pelo bojo da tempestade em crescendo.
Começara a chover.
Já chove, concluiu o colosso. De facto. A sua óbvia
constatação era um facto. Quando calada, aquela altivez dominadora, aguçada no
olhar, mordaz na pose, tudo o que o excitava, o torso, os ombros, as pernas
musculadas, os braços e o peito largo, carne, pura carne, pronto o ataque sanguinário
à fonte do desejo – tão imenso, tudo e todo; fazia-o vibrar a uma magnitude
máxima, apenas abalada por aquelas frases feitas.
Parou. Ao seu lado esquerdo estava a porta de um prédio
velho que ele sabia ter um pequeno recanto para cafés e copos no último piso.
Entra aqui, sim?, subimos ao último piso. Que há lá? Um café, e a vista.
Seguiu à sua frente. O hall sem luz dava para uma escadaria
que caracolava até ao topo. Ao lado um elevador avariado, grafitado
pelo desuso. O colosso tomou a dianteira, naturalmente seguro desse papel.
Subia à sua frente. Estava escuro. As escadas eram estreitas, o ar pesado de
cheiro a mofo. De novo, um assalto de terror tomou-lhe a força. Sentia o pulso
aos nervos pelos arrepios da pele. Que corpo... Degrau a degrau, cada músculo se
contorcia mais provocador, as pernas, as coxas, os glúteos, os ombros, os
braços; o seu braço direito atirou-lhes uma mão esfaimada – parada num instante
por um golpe de fé, ou de lucidez.
Respirou fundo. No primeiro andar olhou pelo janelão da
escada. Triste cidade, o dilúvio vai-te engolir. Se eu tiver sorte, poupo-te o
massacre, pensou – mas naquele preciso instante a sua impotência era extrema. Avistava
ao longe. Havia uma incidência curiosa de sombra e nuvens sobre o torreão da
Câmara. A mais alta e imponente construção das redondezas, símbolo de firmeza e
do poder do homem afrouxava perante a ameaça que vinha de cima. Deitou as mãos
aos bolsos, e um suspiro.
Flashou o primeiro relâmpago da noite – sentiu uma mão
pousar no ombro. Que se passa? estás tenso. Gelou num segundo; recuperou no
seguinte, as mãos libertas: Nada, vim ver a vista.
Virou-se para o colosso, também ele olhava a cidade condenada. Sem tirar os olhos do horizonte, declarou num tom grave,
Virou-se para o colosso, também ele olhava a cidade condenada. Sem tirar os olhos do horizonte, declarou num tom grave,
Gosto de tempestades… Gosto da tensão que paira no ar. Vês
ali, junto à torre? Se uma simples pena voasse entre aquelas superfícies,
edifício e céu, tudo se libertaria.
Tudo o quê?
Toda a energia. A força acumulada. Toda a tensão.
Virou-se, e continuou a subir. Absolutamente fascinado,
extasiado – o rapaz seguia-lhe as pisadas, faminto, delirante por aquele
colosso provocante e provocador. Apurava a sua astúcia, tornava-se felino.
Degrau a degrau, fôlego a fôlego ia reunindo fogos e forças de uma idade primitiva. Observava. O gingar posicionado das ancas, o fundo das costas torneando
os ombros, a espádua larga, ... – inconscientemente, molhou os lábios, recuou um passo, flectiu as
pernas, e, não viesse um novo janelão clarear-lhe o espírito, seguramente se
teria feito leopardo, num ataque de garras, para devorar roupa e carne à presa que perseguia, alheia a tudo.
Na segunda janela viu no céu sobre o Coliseu um bando de
aves negras voarem em círculo, duas vezes, três, e logo se dirigirem para a
torre da Câmara. A penumbra era quase plena sobre a cidade. Estendeu a mão à luz
dos candeeiros da rua: o sangue latejava nas veias como uma fornalha
sedenta. Pulsava a um ritmo incendiário mas constante, fiável.
É o momento, pensou.
No novo lance de escadas o rapaz à sua frente subiu alguns
degraus; súbito parou. Voltou-se. Esperou que o rapaz-leopardo o alcançasse.
Encarou-o a poucos palmos, corpo a corpo. Encostou-se à parede, atirou o peito
para trás, inclinou-se para a frente, as pernas alcançaram as do parceiro.
Olhou-o. O animal selvagem à sua frente mal continha a fera dentro de si.
Deitou de novo as mãos aos bolsos. O colosso examinou o acto: percebeu o intento, assustou-se; engoliu em seco. Por sua vez, enfiou também as mãos nos bolsos.
Desviou o olhar. A presa sentia pela primeira vez o perigo. Leve – mas sibilante
– arfava. Tornava-se ele agora o visionário, mas todas as profecias lhe
falhavam. Adivinhava apenas uma. Estava perto.
O felino aproximou-se. O titã tirou as mãos dos bolsos,
expectante. Mas o flash de um raio veio perturbar o feitiço; caiu a pose, deu
meia volta e continuou a subida. Com olhos finos seguia-lhe os passos. A presa,
já sem a graça de antílope nas pernas, caminhava a passos de cordeiro. No
último degrau, junto à janela do terceiro piso, parou estanque. A noite era
total. Reparou no estilhaço de um dos vidros à sua frente, aproximou-se. Fora
trespassado por uma bala. Examinou com suavidade o dano. Procurava abstrair-se.
Tinha caído na armadilha; ele, que pensava ter tudo sob o mais firme controlo. Não vislumbrava fuga possível. Espreitou então pelo buraco do vidro: num
delírio viu o torreão da Câmara faiscar ao longe. Sentiu um toque áspero no
peito. Levantou-se. Fugidio o relâmpago, um ardor junto ao pescoço; escutou
gelado: «É agora».
Uma dentada fria no ombro e toda a raiva celeste se abria
sobre a cidade, numa torrente apocalíptica. As mãos invadiram o peito, sentiu
as garras ferirem-lhe os mamilos. Um segundo de espanto bastou para responder:
tomou a força que a fera lhe reconhecia, fez-se alto e atirou-o contra a
parede. Imobilizou-o. Sem pensar, pôs-lhe a mão nas calças. Ouviu um gemido envolvido
num trovão. As pernas da fera entrelaçavam-se nas suas. Mas não consentiu a
submissão. Descendo-o, abrindo as calças, obrigou-o a encarar o sexo. A fera
assustou-se; não o esperava tão rápido. Gritou um «espera», mas logo se
arrependeu. Ganhou coragem, salivou guloso. É agora, pensou.
Agora a chuva descia torrencial, o vento soprava contra os
vidros. Pelo buraco ouviam-se os gritos do massacre. As luzes da torre
brilhavam como nunca, e as nuvens por cima enegreciam de cólera e ele
enrubescia de excitação. Tirara as calças, masturbava-se enquanto se digladiava
com o sexo que o confrontava junto à face. De cócoras, agarrava-lhe o tronco das coxas,
subia as mãos até aos glúteos, tensos, acariciava-lhe a pele macia do ventre.
Tocava suavemente o ponto que sabia conceder-lhe um prazer proibido O colosso
vibrava com a labuta, e dominava firme a encenação. Ao sentir um espasmo
percorrer o fundo das costas titânicas, a fera parou. Olhou para cima. De braços
prostrados, apoiado na parede, ele arfava. Cansado, pedia uma pausa. Inaceitável,
pensou. Dava o flanco ao inimigo. Aos seus postos: era a altura do contra-ataque.
Escapou por debaixo das pernas e num salto levantou-se. A
mão preparava o sexo. Encostou-se ao parceiro. Despiu-lhe o casaco. Foi a vez dele: «espera!»; Shss, calma, e sentiu uma mão agarrar-lhe o pescoço, e com agilidade
descer o peito e o abdómen até ao sexo, ainda por saciar.
A outra, mão esquerda, volta ao ponto antes tocado,
aflorado, agora exercitado com delicada (dedicada) pressão e saliva. O colosso, novamente presa, olhava pela janela, mas o seu arfar embaciava o vidro. O único contacto
com o mundo em perdição era o buraco estilhaçado. Com o olhar inconstante via a
guerra de elementos que se travava lá fora, vento e chuva, céu e terra, Deus/Homem,
dominação/subordinação.
Na centelha do instante, cai um raio sobre a Câmara; uma
comoção de dor e prazer devora-lhe o ventre. Tenta resistir; aumenta o grito.
Duas mãos agarram-lhe as coxas; uma escorrega para o sexo. Começa num arfar
ritmado. Súbito, atingido por uma febre extasiante que lhe arranca gemidos
prolongados em compasso rápido, resigna-se. Deixa-se levar. Aparta então mais
as pernas. Arrisca, a medo, um olhar para trás: a besta fantástica agarra-lhe
os quadris, trepa-lhe a espinha e manipula todos os seus movimentos com a
mestria de um marionetista. Ao leme de uma grande nau, pensou, a tempestade
era-lhe subserviente; e isso concedia um prazer extremo a que não estava
habituado – a pose não lhe era costumeira, descondizia do seu estatuto de colosso. Fechou-se no embalo em que o conduziam as pernas da besta e, num
suspiro abafado em gemidos, abençoou a sua submissão. Ao ouvi-lo, o marujo
empolou-se, e esmerou a sua precisão de leopardo, rumo a bom porto. A presa
expirou profundamente e num relance ainda conseguiu fisgar o mundo que se finava lá
fora.
As rajadas de um vento diabólico arrancavam ramos de árvores
enormes, figuras mais frágeis tombavam na rua e eram levadas pelos rios de água
para o abismo da Avenida. Os prédios já muito deslavados pelas torrentes que se
largavam dos céus ameaçavam ruir a qualquer instante. Mas a torre da Câmara
resistia. Iluminada, apontava ao seu agressor. A base larga dava-lhe apoio
firme, a praça soprava-lhe a respiração de pedra que a sustia. O último bastião
de esperança da urbe resistia, resistia. Até ao final.
A chuva tornava-se intermitente, o vento soluçava em brisas.
A tempestade afrouxava agora. Um último raio travou a meio o seu ataque, e
recuou às cegas, desertor. Sobre a torre dissipava-se o tumulto. A luz lunar furava
entre os farrapos das nuvens. A noite séria impunha-se sobre a cidade, numa
colcha que cobria toda a devastação.