4.4.11

Jim

[Ao iniciar este post lembrei-me de um certo alguém a quem Nick Ray, por um outro filme não muito diferente do Rebel without a cause, deu “o filme da sua vida”. A escrita de Bénard da Costa apresentou-me este termo maravilhoso, e desde então não passa um dia em que não seja levado para um dos muitos filmes que são o filme da minha vida. Os livros do Bénard mostraram-me, com implacável humanidade, como os filmes da nossa vida e os nossos filmes da vida se entrelaçam na mesma inseparável fita.]

Com o fim da idade da inocência veio o Maio de 68.
Vi o Rebel aos 15 ou 16 anos (a pós-puberdade), numa altura em que a minha personalidade dava passos decisivos para se consolidar desordenadamente no estranho eu que sou hoje. (Bem, naquilo que vai mudando mais lentamente, pelo menos.)
Foi o meu primeiro ano de secundário, numa escola nova, longe de casa e do meio a que estava habituado, e atirado (por minha vontade expressa) para o meio da cidade. Era uma escola pequena (pública, claro), interclassista,  direccionada para as economias e humanidades, sem os tiques de bullying social a que estava habituado no básico - aquele ambiente de american highschool que tive de suportar com demasiada paciência. Parecia-me um sítio confortável e os meus colegas pessoas acessíveis e amistosas. Foram primeiras impressões que se confirmaram passados alguns meses, o tempo que bastou para ter encontrado aquelas que continuam a ser das amizades mais queridas da minha vida.
Na verdade, este post é sobre uma delas em particular. É sobre alguém que eu terrivelmente admirava e em que eu via o próprio Jim Stark (eu seria por ver nele o Jim que o admirava?). 
[Doravante este meu amigo será referido aqui no blog pelo alias “Jim”].

O Jim era uma pessoa extremamente segura de si. Em vez de se dissolver no ambiente que o rodeava, definia-o à sua medida. Na escola, vivia à parte dos mainstreamers, essa gente que o respeitava porque não o entendia, e por isso receava-o. [Eu sempre percebi como funcionava o mainstream mas, por preguiça e falta de coragem, compactuava com o estado das coisas (mesmo que não infrequentemente me sentisse completamente deslocado da realidade - altura em que me refugiava na realidade dos filmes)].
O Jim tinha carisma e atitude, e não hesitava em recorrer à força (verbal, física, e intelectual) quando necessário. Não receava o conflito; via-o como inevitável para marcar o seu espaço. Não suportava a superficialidade hipócrita dos mainstreamers, ele que, sendo mais velho do que nós, tinha passado por outras escolas onde a luta pelo espaço havia sido bem mais agreste. [Tinha passado, inclusive, pela escola nossa rival nos rankings nacionais, mais abaixo na mesma avenida; escola essa que é, para mim, o protótipo do american highschool no Porto. Ter dito "não" aos meus pais quando me tentaram inscrever nela foi, provavelmente, o meu primeiro finca pé enquanto pessoa responsável.]

O que ele mais queria era o conforto de uma mesa de café com os poucos que não o julgavam. Essa família, a que eu me juntei, tinha morada num café de rua a uns quarteirões da escola. Passamos tardes infindáveis e não raras noites a conversar nesse café; a conversar e a rir, só, e não chegava tempo para tudo. 
O Jim, além da amizade, tinha-me em alta consideração intelectual. Acusava-me de ser o seu amigo com maior “cultura geral”, e eu ria-me porque notava na sua voz o laivo de orgulho magoado ao admitir isto. Competíamos pelo lugar de melhor da turma que eu, no geral (pela cultura, ripostava ele) assumia, mas que ele vergava ao dominar com invejável facilidade a única disciplina séria que dizia termos – a Matemática.
Os mainstreamers respeitavam-nos também por isso; na verdade, mais por precisarem de nós para trabalhos de grupo e copianços furtivos durante os testes. Nós condescendíamos a troco dessa ilusão de poder.
Unia-nos ainda a paixão pelo cinema. Eu andava a descobrir os Japoneses e os Italianos (Kurosawa e Fellini são os meus mestres destes anos); ele tinha gostos mais prosaicos, mas não menos fascinantes, e desse encontro resultaram muitas soirées cinéfilas em família.

Tenho que admitir: se ele era, em muito, um reflexo do Jim cinematográfico, eu era uma caricatura do Plato (apesar de nunca ter passado pelo drama familiar da personagem, ou outro qualquer que levemente se aproximasse).
Para um puto de 15 anos a aprender a lidar com um contexto social novo, com uma personalidade em ebulição, a deparar-se com os descontrolos e surpresas da sexualidade (e que surpresa), alguém tão seguro e decido como o Jim não podia deixar de ter em mim um impacto extremamente profundo.
Escrevi num outro post que o James Dean tinha a segurança no olhar. Independentemente de género e estrato, feitio e postura, todo o adolescente anseia por segurança, conforto e, como alguém recentemente me explicou, pertença. Mais do que noutra fase da vida parece ser isto que mais nos move por esses anos. Não admira que com um corpo e personalidade em violenta catarse tenhamos essa desesperante necessidade.
Os olhos do Jim irradiavam segurança.
Admito-o, traindo o meu pudor, que por isso o desejava. Sexualmente também, claro (todo o desejo é em parte necessariamente sexual, sobretudo naquela idade). Não sei se ele o percebia; talvez o tenha percebido. Quando finalmente descobriu que eu gostava de dormir com meninos já essa admiração/atracção se tinha transmutado numa puríssima amizade livre dos complexos hormonais dos verdes anos. Agora pergunta-me à descarada se eu me sinto atraído por ele, e eu descarada mas sinceramente firo o seu orgulho donjuanino dizendo-lhe não. [Da última vez que o levei à discoteca gay mais em voga do Porto acabou a noite radiante, por saber que podia ter levado para casa qualquer uma das divas que lá estavam. “Tens mesmo sorte em ser gay”, diz-me de vez em quando.]
*

Isto é o (meu) Rebel without a cause: medo, escape de um mundo estranho, inadaptação, busca pela segurança, pertença. É a inspiradora ode a um dos mais controversos debates da actualidade - o da família. Jim, Judy e Plato, três párias de um mundo que lhes é estranho, encontram no conforto da família que formam a força para conquistarem o seu espaço na adversidade que os rodeia. Sobre a conquista da liberdade, e do caminho que robustece a personalidade. [Apetece-me citar o On Liberty do Stuart Mill, mas não o vou fazer; arriscar-me-ia a politizar ainda mais o filme].
Receio bem que se não tivesse, com a ajuda do Jim e da restante família, conquistado o espaço para me libertar naqueles anos, não teria a força para tentar definir o que me rodeia, coisa a que, aprendi-o, apenas posso ambicionar definindo-me primeiro. Não teria, seguramente, dado o primeiro passo para essa auto-definição, aceitando a minha sexualidade.


*e um obrigado ao Paulo por me ter mostrado esta foto.

2 comentários:

João Roque disse...

Que bom haver um blog de alguém que, alia ao gosto do (bom) cinema, a sabedoria de usar as palavras certas para analisar situações, neste caso pessoais, de uma forma tão bela.
Este filme, este trio (a foto é soberba), é um marco da história do cinema.
Feliz lembrança desse Senhor Cinema que foi Bernard da Costa e finalmente um agradecimento de me teres dado a conhecer um novo blog, cheio de coisas interessantes.

virgil disse...

Oh, amigo, é demasiado; mas agradeço-te o elogio :) normalmente não costumo ser assim tão saudosista, mas desde que me mudei para a China deu-me para isto :p
acredito piamente que os meus filmes da vida e os filmes da minha vida são indissociáveis. a minha paixão pelo cinema baseia-se nisto.
grande abraço :)