14.3.11

«My purpose in coming to Hollywood is the destruction of the American male in all its particulars.»

Sinto por este filme um carinho perverso. Primeiro, porque muito pouca gente o conhece, e ainda menos gente o viu. Segundo, porque é um filme mal feito, não sendo por isso um mau filme. Terceiro, porque é um filme que não faz sentido.

Como que se explodisse após 50 anos de censura e opressão sexual, o sistema hollywoodiano produziu, num  espasmo de insanidade, este objecto peculiar, controverso e muito odiado pelos classicistas. Baseado num romance de Gore Vidal, o filme aproveita o título e o espírito do livro, mas molda-o à sua maneira. E que maneira!: homo-bi-trans-sexualidade, pornografia, feminismo, travestismo, racismo, formalismo, patriotismo, e outros; o filme tira todo e qualquer pingo de seriedade que estes ismos possam ter, arrasa-os e humilha-os, como uma Dominatrix espezinha o seu escravo. Nem sequer o tenta esconder: é um ataque frontal ao convencionalismo de Hollywood e da sociedade americana do pós-guerra. 

É um filme mal feito por ser tão desequilibrado no ritmo e no desenvolvimento da história, e pelos erros crassos tanto de montagem, realização e interpretação. Mas é precisamente por isso que me fascina tanto. Imaginem um filme trash feito com um generoso orçamento, com estrelas de topo, e acesso ilimitado ao arquivo de clássicos da 20th Century Fox. Imaginem um Russ Meyer com uma sensibilidade queer, e com um (falhado) sentido de humor de inspiração Marxista (dos Irmãos, não do Karl). Conseguem imaginar?

Myra só pode ter sido, como disse, fruto de uma decisão tomada à pressa por um qualquer subdirector de produção da Fox, num tempo em que Hollywood atravessava uma das suas piores crises, e em que os movimentos libertários inflamavam a sociedade. Tentou-se uma aproximação a essa nova realidade, tentou-se aproximar o clássico do revolucionário. Foi um tiro no escuro.
Algumas das maiores vedetas dos anos dourados foram contratadas. Destacam-se duas: Mae West e John Huston. A primeira, lembrada como a diva picante dos anos 30 e 40, ultrapassa com esta Leticia Van Allen em muito a subtileza do seu lendário come up and see me sometime, e entra  num "galdéria mode" a que nenhuma outra diva, por muito que votada ao esquecimento, alguma vez recorreu para tentar um return às luzes da ribalta. 
John Huston nunca encarnou homem mais abjecto que este Uncle Buck, um cowboy punheteiro que gere uma escola de actores para fins pessoais nada puritanos. Ambos viram a sua respeitabilidade seriamente afectada depois de Myra

Tudo isto faz do filme um hino ao nonsense. É (porque para se gostar dele tem de ser visto assim) uma homenagem ao cinema clássico americano; uma homenagem, no entanto, muito sui generis: a lenda é arrombada do seu pedestal dourado e intocável, violentada e ridicularizada, e elevada a um novo pedestal, em nada parecido com o primeiro - arriscaria chamar-lhe um pedestal queer, mas não quero abusar desta palavra, que parece servir para tudo e não querer dizer nada. Mais justo será dizer que é a reabilitação da lenda à luz da nova sociedade dos anos 70, uma sociedade que consegue ver na depravação e no deboche algo de admirável e fantástico.
Correndo o risco de ser mais brejeiro que a Katyzinha (mas hão de me desculpar quando virem o filme), resumo tudo isto a uma frase, em bom português da minha terra: 
Nunca o cinema clássico americano foi tão bem enrabado como em Myra Breckenridge. E que bem lhe soube. 

3 comentários:

João Roque disse...

Curiosamente, embora já tenha visto o filme à muito tempo, e sei que a principal novidade foi a ressurreição da Mae West, só há muito pouco tempo li o livro e fiquei com muita vontade de rever o filme.

virgil disse...

Em relação ao livro segui-me pelo que li na net. Li também que o Gore Vidal detestou o filme.
Recomenda-se?

João Roque disse...

Foi dos livros que li dele, um dos menos interessantes...