No cinema, como em muito na vida, sou um tradicionalista. Detesto ver filmes no computador - na televisão não me importo tanto. Infelizmente, é demasiado frequente serem estes os únicos canais em que os podemos ver. Acredito piamente no seguinte: em casa vemos filmes; na tela gigante da sala às escuras cheia de gente vemos Cinema.
Queria, por isso, falar hoje de três sessões de cinema - umas mais curiosas outras mais marcantes, e dos filmes que nelas me foram mostrados.
Onde Bate o Sol (1989) A primeira ocorreu há pouco tempo (há cerca de um ano, acho). Foi na sala 1 dos (agora fechados) Cinemas Cidade do Porto, à Rotunda da Boavista. A Medeia comemorava 20 anos de actividade, e decidiu oferecer-me convites para um desconhecido filme português dos anos 80 incluído num ciclo de homenagem a um senhor que acredito muito admirável e competente mas de que agora não me lembro do nome.
Esforcei-me por arranjar companhia, mas ninguém quis arriscar um fim de tarde comigo a ver um duvidoso filme português do século passado. Nem os meus amigos e conhecidos, nem o restante público. A sala tinha (notem bem) 5 espectadores: eu, o programador do ciclo, o amigo do programador, e um casal de desconhecidos a quem ofereci, à ultima hora, um convite do qual não me conseguira desembaraçar a tempo. Por isto, sou provavelmente uma das poucas pessoas que já viu este estranho objecto do cinema queer português. Mesmo sem o ter percebido, na altura.
Sabia muito pouco sobre o filme antes de ter entrado na sala, mas lá decidi ir à aventura. O filme começa: a imagem de péssima qualidade produzida por uma película roída pelos anos; os habituais problemas de som, marca quase registada do cinema português (o filme foi dobrado depois de filmado); a história convencional (ou assim parecia, à partida) - uma série de intrigas familiares ambientadas por aquela decadente aristocracia contemporânea que vive em Lisboa durante a semana, no tempo actual, e numa casa abrazonada no monte aos fins de semana, num tempo que já lá vai.
O filho mais novo chega de Lisboa. Um puto habituado à vida da cidade, às coisas do mundo, conversador e afável, mas esperto. Depois há outro rapaz, o caseiro da quinta, o oposto do jovem patrão, nascido e criado na ruralidade, temente às antigas hierarquias de poder; vulnerável aos encantos da cidade moderna, portanto. O resto podem adivinhar.
Não imaginam a surpresa!: as baixíssimas expectativas que tinha quando entrei na sala transformaram-se, à medida que a história se desenrolava, em (audíveis) expressões de incredulidade. E ainda mais quando a "relação" entre os dois rapazes começa, por fim, a cozinhar-se com muito cuidado e em lume brando. Nunca é explícita, porque o cenário não o permite (e o filme perderia o mistério). É uma dialéctica cidade-campo, corrupção-inocência, como se pretendesse (abuso, claro) um "Sunrise" queer no Portugal de oitentas.
Uma das melhores surpresas que tive frente ao grande ecrã.
Rocky Horror Picture Show (1975) Vou ser mais breve em relação a este, até porque toda a gente conhece o muito adorado musical do Dr. Frank-N-Furter.
Há uns anos, o Fantas decidiu exibi-lo no Teatro Sá da Bandeira. Para quem não conhece, este teatro portuense tem péssima fama por lá terem sido exibidos, durante muito tempo, filmes a que o JN ainda apelida, nas suas listagens, de porno hardoce. Pelo seu aspecto de teatro degradado do final do século XIX, tornado, ao longo do século passado, no palco principal da Revista nortenha e, depois, casa da matiné do deboche (mais recentemente tem surgido na televisão como imagem de fundo daquelas reportagens sobre os maus hábitos nocturnos das gerações mais novas); por isto tudo era o cenário perfeito para uma sessão do Rocky.
Em Paris o filme é exibido semanalmente há 20 anos, em sessões nada convencionais. A audiência faz parte do filme: mascara-se, intervém nos diálogos, canta e dança as músicas. O culto está bem vivo por esse mundo fora, e recomenda-se.
Em Portugal também, como se viu nesse dia. Mal os lábios vermelhos invadem o ecrã do Sá da Bandeira, começa a paródia! (sem o vigor e a adesão das sessões de Paris e Berlim, mas, ainda assim, orgulhosamente irreverente este Rocky in Porto). Chegados ao Time Warp, todo o velho teatro se abana e acompanha o movimento pélvico que o Criminologista nos ensina, num vigor sincronizado que muito honrada teria deixado Ivone Silva uns anos atrás (e os actores porno dos anos 70 que a substituíram no palco do Sá da Bandeira).
Shortbus (2006) É, destes, o filme mais recente, e a sessão mais antiga. Ainda nem tinha entrado para a faculdade (foi há uns cinco anos, por isso). Estávamos em Maio. Decidi dar um salto a Lisboa, por três razões: para ir conhecer o Indie; para percorrer os bairros típicos da capital; para ir ver os Scissor Sisters ao Coliseu dos Recreios.
Da primeira e única tarde de Indie não tenho grandes lembranças cinéfilas (a não ser pelo ambiente do festival, claro): um filme isrealita sobre a vida de duas mulheres no exército, um Tsai Ming-liang muito aborrecido, um filme de terror japonês terrivelmente fraco.
Da primeira e única tarde de Indie não tenho grandes lembranças cinéfilas (a não ser pelo ambiente do festival, claro): um filme isrealita sobre a vida de duas mulheres no exército, um Tsai Ming-liang muito aborrecido, um filme de terror japonês terrivelmente fraco.
O mesmo não posso dizer em relação à noite! Sessão lotadíssima de antestreia do segundo filme de John Cameron Mitchell. O ambiente do grande auditório do São Jorge era arrebatador: respirava-se puro cosmopolitismo naquele lindíssimo enquadramento art déco, mas sem cair no pretensioso - era um genuíno à vontade e profundo interesse cinéfilo. Quando nos calha a sorte de ter 800 pessoas à nossa volta com esta disposição para ver Cinema, torna-se muito mais fácil de explicar porque detesto ver filmes no portátil.
Sentir a plateia vibrar com o filme é uma sensação de pertença maravilhosa. Risos, palmas, gemidos de repulsa (um desses momentos: o autofellatio ), assobios provocadores, gestos, sinais de deslumbramento... Mesmo sabendo que a esmagadora maioria da plateia estava ali mais para ver um filme gay do que um filme de autor, a conjugação destes elementos todos tornou a sessão numa das mais memoráveis a que já assisti num festival (não desfazendo as maravilhosas sessões a que o meu querido Fantas já me habituou).
No dia seguinte, a cereja em cima do bolo: Jake Shears a dançar de cuecas à minha frente, no palco do Coliseu. Desse fim de semana, mais que a Lisboa dos santos, das tascas, dos azulejos, das colinas, ficou a memória de uma Lisboa Qapital de Portugal, que inúmeras visitas seguintes me vieram a confirmar definitivamente.
2 comentários:
Como eu adoro estas postagens tuas...
Quanto ao filme português, confesso que não sei ao certo se vi o filme, mas penso que não; e será extremamente difícil sacá-lo, onde quer que seja, imagino. De qualquer forma, a história é-me vagamente familiar.
O "Rocky Horror Picture Show" é mesmo um filme de culto, que claro, possuo e de que gosto mesmo muito. Dá-se a particularidade de ter visto há uns bons anos atrás, o musical em Londres, curiosamente não em West End, mas num pequeno teatro de King's Road, e adorei.
Sobre "Shortbus", que, por incrível que pareça só vi há pouco tempo, já disse tudo numa postagem, que deixei no meu blog, sobre o filme: um "must".
Oh, obrigado amigo ;)
O filme português és capaz de o conseguir ver na cinemateca, suponho eu. Tenho a sensação que a cópia que vi é a única que resta dele..
Vou ler o post do Shortbus, então
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