Balanço muito positivo da primeira sessão da Mostra de Cinema Queer de Braga, que teve ontem lugar no Restaurante-Bar Balanz, ao centro da cidade. Um público atento, descontraído e divertido assistiu a mais de hora e meia de deboche visual protagonizado por Divine (de John Waters), enquanto que outra Divine (a Jimmy, de Guimarães) preparava o show que se seguiu ao filme e que arrancou demoradas gargalhadas da assistência.
Transcreve-se agora o texto da folha de sala distribuída como introdução ao ciclo e ao filme de John Waters, Pink Flamingos. Escrito pour moi, entenda-se.
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«No site oficial do clube de fãs de John Waters (dreamlandnews.com) é-nos apresentada a lista das principais referências artísticas do realizador. Vale a pena, porventura, referi-las uma a uma: Ed Wood, William Castle, Russ Meyer, Kenneth Anger, Richard Kern, Ingmar Bergman, Federico Fellini, Nick Zedd, R.W. Fassbinder, Andy Warhol, Walt Disney, The Wizard of Oz, Diana Arbus e Herschell Gordon Lewis. Nesta brevíssima introdução ao cinema de John Waters (e ao Cinema Queer) a longa enumeração que constitui a última frase pode parecer supérflua. Pelo contrário, estes são nomes essenciais para perceber a história, a estética e a simbologia do Cinema Queer - sobretudo o cinema pós-John Waters. Foi ele o primeiro a reunir tão ricas e diversas influências e não será, por isso, abusivo reconhecê-lo como o primeiro realizador assumidamente queer do cinema americano.
1972, ano do lançamento de Pink Flamingos. Três anos antes, na Greenwich Village de Nova York, os infames Stonewall Riots haviam gerado espontaneamente o Movimento LGBT enquanto acção popular organizada. Em 1970 realizava-se, na mesma cidade, a primeira Marcha do Orgulho Gay. Nesse mesmo ano de 72, um anónimo analista financeiro de Wall Street mudava-se para a Castro Street em San Franscisco para, cinco anos depois, se tornar o primeiro homem assumidamente gay a ser eleito para um cargo público nos Estados Unidos. Os seventies foram definitivamente a década chave na história dos direitos LGBT.
No cinema, como seria de esperar, a mudança também se fez sentir. Durante os anos sessenta, grandes nomes da Hollywood clássica tentaram inúmeras vezes (com inquestionável sucesso de público e crítica) beliscar o famigerado Código Hays (a censura do cinema americano), introduzindo a questão da homossexualidade cada vez mais explicitamente nas suas produções (sempre com grandes estrelas, enormes orçamentos e uma vasta distribuição). William Wyler, Otto Preminger, Joseph. L. Mankiewicz, John Huston, entre outros realizadores dos anos dourados da indústria, assinaram para os grandes estúdios de Hollywood filmes que lidavam com personagens homossexuais à beira do abismo emocional. Simultaneamente, surgiam no underground cinematográfico os pioneiros daquilo que mais tarde se rotularia como Cinema Queer. E é destes que importa falar agora.
Atirado para os domínios da série B (na verdade, C, D, E…), o Cinema Queer partilhava os mesmos problemas que os outros subgéneros renegados, nomeadamente a nível financeiro e de produção. Os primeiros filmes queer são filmes de baixíssimo orçamento, que recorrem a actores amadores, cenários mal amanhados, e a técnicas de filmagem muito duvidosas. Os filmes de terror de Ed Wood, William Castle e H. G. Lewis eram bem conhecidos (e apreciados) por essas características, e que logo se tornavam objectos de culto. Eram, para além disso, a única “escola” que os cineastas queer tinham à sua disposição. Os seus mestres eram os mestres da série B.
Ficar à margem do mainstream tem as suas vantagens; a de conseguir escapar à censura é, sem dúvida, uma das principais. Nudez, sexo explícito, violência gratuita, “depravações da carne” e outros temas proibidos tornaram-se a fixação de autores como Russ Meyer, Andy Warhol e Kenneth Anger - estes dois últimos tidos como os pioneiros do género queer americano (e Fireworks [1947] de Anger como o primeiro registo explicitamente gay). Estes autores “depravados” viriam a inspirar tremendamente a geração seguinte e cineastas como Richard Kern, Nick Zedd (para citar apenas os nomes em analise) e o próprio John Waters.
Da Europa vêm as influências do novo cinema do pós-guerra e a libertação dos cânones artísticos de Hollywood. Os realizadores queer nunca se viram como meros activistas dos direitos LGBT; procuravam a arte! – se conseguissem esboçar algo parecido com uma arte queer, tanto melhor. O onirismo humanista de Fellini, o existencialismo de Bergman e o sentimentalismo trágico de Fassbinder (e ainda a inconvencionalidade da Nouvelle Vague) conduzem essa busca em diferentes direcções. Funcionam igualmente como instrumentos essenciais para representar a nova visão de sociedade que o Cinema Queer quer introduzir no mainstream americano.
Finalmente, o mote de todo o movimento e a legitimação da causa, o somewhere over the rainbow. Não foi por acaso que na primeira Marcha Gay os manifestantes recorreram às canções de Judy Garland como grito de intervenção. Se o Cinema Queer tentava alguma mudança social (manifesta ou cultural) era a de transformar aquele claustrofóbico Kansas a preto-e-branco que se tinha tornado a América do pós-guerra, num mundo de Oz vibrante, colorido e alegre (gay) - uma sociedade em que não existissem armários, repressões, códigos, mensagens subliminares, culpa, vergonha, and all that jazz. Enfim, o Sonho (o Americano), o grande professor da idade da inocência, o único ideal que faz sentido quando temos 5 anos e todos os problemas do mundo (aprendemos com a Disney) fazem parte de um Kansas a preto-e-branco e nunca de um Oz governado pela lei do benevolente Feiticeiro da Cidade Esmeralda. O único legado que está presente em quase em todo o Cinema Queer é o do somewhere over the rainbow, ainda que mais ou menos assumido. É quase impossível fugir dele, mesmo se para lá do arco-íris houver um Sonho a precisar de ser reabilitado (o New Queer Cinema tentou-o nos anos noventa). Mas como voltar a Oz se, como cantam os Scissor Sisters, the grass is dead, the gold is brown and the sky has claws?»
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