14.3.11

Os filmes do Código

Com este post pretendo dar início a uma série de notas de rodapé sobre o Cinema Queer. É um dos assuntos que mais me fascina e, paradoxalmente, um dos a que menos atenção tenho dado aqui no blog.


O código em questão é aquele que ditava os temas proibidos no cinema clássico de Hollywood dos anos 30 a 60 - o Código Hays. Incluo uma breve citação que explica na perfeição o tell or not to tell deste período áureo do cinema americano:

Existe nos E.U.A. um código da produção [cinematográfica] – o famigerado Código Hays (do nome de William H. Hays, seu inspirador principal) – datado de 1930, mais ou menos modificado posteriormente, e que indica um certo número de proibições. 
O argumento de um filme nunca deve aprovar a eutanásia nem justificar a vingança, pelo menos no que diz respeito à época contemporânea. A imagem não deve mostrar em pormenor assassínios brutais, e a técnica do crime de morte, sob a forma que se encontra descrita na literatura, que não pode ser imitada. O emprego das armas de fogo tem de ser reduzido ao essencial. A descrição das perversões sexuais, subentendidas ou não, é interdita. Nunca se mostrará o parto, nunca se pronunciará a palavra aborto. São igualmente proibidas as blasfémias intencionais e todas as afirmações irreverentes ou grosseiras. As cenas em que alguém se despe são de evitar, assim como a exposição de certas partes do corpo humano, entre as quais o umbigo. O adultério e todo o comportamento sexual ilícito, por vezes necessário à construção da intriga, não devem ser tratados explicitamente, nem justificados nem apresentados a uma luz atraente. Não se deve nunca ridicularizar qualquer fé religiosa, e os ministros do culto, no exercício das suas funções, jamais serão apresentados sob um aspecto crapuloso ou cómico.
in “A Crise de Hollywood” (1967) por Paul e Jean-Louis Leutrat

As questões LGBTs, enquanto "perversões sexuais", eram, desta forma, banidas do grande ecrã. Pelo menos de forma explícita, já que o subentendido em questão só o é de facto se o censor for dotado da inteligência necessária para entender o que está sub. A história mostra-nos que, neste como noutros domínios, o lápis azul sempre se mostrou demasiado opaco para conseguir ver para além do literal das palavras. Ou das imagens.

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Suddenly, Last Summer (1959) é o primeiro filme de que quero falar. Realizado por um gigante de Hollywood, J. L. Mankiewicz (All about Eve, Cleopatra) é uma adaptação da peça de Tennesse Williams com o mesmo nome. Elizabeth Taylor, Monty Clift e Katharine Hepburn interpretam (porque já não temos elencos assim?..).
É a história de um fantasma, e da sua inominável sexualidade. Tennesse Williams não teve esse problema no teatro (o povo abomina o teatro, não faz lá falta a censura), em que o coming out é feito no momento oportuno do desenrolar da acção. Mas no ecrã é impossível fazê-lo - palavra proibidíssima!, apesar de nela estar o filme todo.
É por isso que os filmes desta época que tratam das questões da sexualidade são verdadeiramente fascinantes! A subtileza do diálogo, o simbolismo da mise-en-cène, a tensão psicológica, elevam-se, pela proibição do explícito, a um requinte delicioso. 


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Advise & Consent (1962). Otto Preminger fazia o que queria e ninguém o impedia. Não deve ter havido realizador ou produtor mais maldito aos olhos da censura de Hollywood. Cada novo filme seu apontava a mira a um dos temas proibidos pelo código, e esticava a paciência e permissividade dos censores a limites que mais nenhum realizador conseguiu. Prova disso: pela primeira vez na história do cinema americano vemos um bar gay na tela. Corria o ano de 1962.
O filme é um "thriller" político passado durante os anos do MacCarthismo, em que as vidas, perfis e ideologias de vários senadores americanos são postas em confronto. É a política em estado puro: homens que se deparam com as perigosas questões do nacionalismo, da privacidade, do poder, da integridade moral e (só faltava) da sexualidade.
Mesmo não me estendendo muito no desenrolar do enredo para evitar spoilers, não custa adivinhar que um desses senadores é gay. E, como a política trás sempre à tona o melhor do Homem, logo desde o início vemos o promissor e exemplar jovem senador ser chantageado pelos seus adversários no Senado.
O filme analisa os limites morais do julgamento político, tendo como base uma "perversão sexual". Ao por a questão nestes termos, o filme transforma o homossexual (ainda sem o seu (proibidíssimo) nome científico) em vítima. E consegue-o, pelo menos, em dois sentidos: vítima do egoísmo e sede de poder dos homens; e vítima de um sistema que o sufoca até ao desespero. Quando cabe julgar, no final (uma "caça às bruxas" MacCarthista tem lugar na segunda parte do filme), o que define ao certo a acção moral e íntegra, é na história trágica do jovem senador que o filme encontra a sua força emocional.


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Caged (1950). O último filme deste post não é um filme LGBT, mas pertence certamente ao conjunto de obras que define o cinema queer pré-Stonewall. 
Não é um filme LGBT porque a única personagem que assim podemos supor sem embarcar em especulações ambiciosas é uma criminosa, líder da máfia prisional, devoradora de rapariguinhas delicadas (como a protagonista do filme); é, obviamente, tida como uma das más da fita e isso não prestigia a "causa". Ainda assim, um filme que transpira feminismo em cada frame, com dezenas de mulheres enclausuradas num cenário tipicamente "masculino" (como eram representadas as prisões à luz dos anos 50), pela irreverência do tema numa altura em que a sociedade não consentia às mulheres que usassem calças; ainda assim, dizia, é um filme queer
Feminismo e causa LGBT sempre andaram de mãos dadas. As lésbicas dos anos 50 eram duplamente discriminadas, e subjugadas a duas visões do mundo que as oprimiam: o machismo e o heterossexismo. Não admira que tenham visto neste filme representadas as suas frustrações e o seu protesto. 
Da história: é o "coming of age criminal" de uma fragilizada e inocente jovem mulher, presa por cumplicidade num assalto em que o seu marido é morto. Nunca mais arrependida do seu acto esteve a pobre criatura do que antes de ser condenada, e entrar nessa rotina sufocante que substitui o arrependimento pela sede de vingança e a inocência pelo ódio.
De alguma maneira, pode ver-se nesta união de mulheres atraiçoadas pelo mundo e desfiguradas pelo sistema opressor um apelo à luta contra as duas visões que referi em cima. Fosse o cenário outro, e outras as protagonistas, e seria bem diferente o inimigo opressor (a religião, o poder político, a sociedade de classes,...). Não sendo esse o caso, é esta a ponte para o mundo queer que me surge quando vejo o filme.
Para não falar do seus méritos artísticos, mas já não há tempo.


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[nota: falta aqui um obrigatório, provavelmente o melhor filme "lésbico" desta série de filmes do Código. Trata-se de The Children's Hour (1961) de William Wyler, com o irresistível duo formado por Audrey Hepburn e Shirley MacLaine. Terá, num futuro próximo, o seu devido espaço aqui no blog.]

4 comentários:

Paulo Brás disse...

Suddenly, Last Summer (L)

virgil disse...

o filme ou a peça (ou ambos)?

João Roque disse...

Vou estar super atento.
Não conheço "Caged", mas sim os outros e revi há umas semanas o "Suddenly...", que me encanta cada vez mais.

Paulo Brás disse...

ambos

http://revista-aberta.blogspot.com/2010/04/rude-ri-ego-alma-e-vida.html